segunda-feira, 24 de maio de 2010

E todo o resto é falta de luz.

Enquanto as casas adormeciam pelo lado de lá de nossas paredes, nos procurávamos em meio as frestas das portas, em meio aos feixes de luz.




Passei olhando pelo apartamento os restos do fim de semana, o sol sumia entre as minhas cortinas, mas mesmo assim eu notava o cinzeiro transbordando, feito eu de você. Não cabia um pensamento sequer com tanta roupa espalhada pelo chão, dvd’s, livros, sapatos, papéis; mas a mala me incomodava mais que qualquer outra coisa, não tanto por eu ter tropeçado nela todas as vezes em que passei pela sala (e foram muitas), mas principalmente por não saber o que fazer quando eu te visse indo embora. De novo.

A sua agenda hoje anda tão cheia quanto a minha, talvez mais, deixando pra trás o tempo em que seu trabalho começava quando o meu terminava, mas antes do amanhecer já íamos pela estrada ouvindo salsa.

Eu fui assim, vagando distraída pela noite adentro, devorando livros feito traças, virando latas de lixo, varrendo a poeira de estrelas pra debaixo do meu tapete. Andei profetizando o nosso acaso e o fim dos tempos, que tendem a se inflamar bem mais nas manhãs de segunda-feira, enquanto você dormia sereno e lindo, refestelado em minha cama.

Qualquer agrado não me é bem vindo hoje, quero saber só dos beijos sem alma e das tuas mãos em minhas coxas; não quero que gaste meus ouvidos com as tatuagens fracassadas me tomando os braços, no entanto, despejo em suas costas o peso dos meus amores naufragados. Quero sentir teus pés no meu chão. Me conta por quantas praias você andou até aqui, mas apenas as que andou sozinho, quero saber o peso exato da tua viola quando o fardo era só teu.

Deixa os sapatos perto da porta, que não quero teus passos me mostrando algum caminho. Dança comigo sem música e rasga a minha roupa quando for me despir, me desenha com a boca e guarda os abraços pra outro dia; hoje eu quero só teu ar. Quando o coração disparar, acalma ele com meu silêncio, derrama em meu peito a culpa dos pecados e o veneno da tua saliva, me dá de comer na palma da mão, mas não censura meu sexo. Eu quero ser a saída e o banho frio, quero destruir os sonhos com a minha falta de escrúpulos, com meu olho absurdo, com minha voz desafinada.

Eu preciso de bem mais que duas aspirinas pra aliviar essa ressaca homérica que sinto toda vez que te vejo indo embora, deixando um bilhete na geladeira, deixando uma meia sem par. Me deixando no escuro, com o barulho dos carros apressados a me lembrar que eu também tenho pressa quando não tenho você.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

O caso da 3x4.

Tem sempre uma caixa que some na mudança.




Voltei pra acompanhar a reforma da casa antiga, ver as salas mudando de lado, mudando de cores, a cozinha aumentando e meu quarto que já não é mais meu, virando um confortável quarto de hóspedes, mais um na casa imensa. Reforma traz a condição de novas lembranças, carrega o peso de um futuro que promete ser bom; não se faz sala de jogos onde não se pretende passar a noite bebendo, blefando e rindo-se inteiro.

Eu já ia até que bem empolgada com todas essas mudanças, paredes caindo, portas surgindo, janelas andando; quando resolveram mudar também a escada. Foi no meio da demolição da escada que achei uma foto 3x4 sua, do tempo em que eu ainda carregava fotos na carteira, do tempo em que eu ainda usava carteira. Com poeira de cimento, o chão se abriu sob meus pés.

A foto deve ter caído na correria da minha mudança, quando a caixa que levava minhas partituras se espalhou pelos degraus, dando o maior trabalho pra colocá-las em ordem depois. Sentei no meio da antiga sala de tevê e fiquei olhando pra você, tão bonito; na foto você está sério, mas lembrei daquelas boas gargalhadas que você dava quando me via observando as manias das pessoas, lembrei das risadas que você não podia dar e mordia os cantos da boca, numa tentativa frustrada de juntar os lábios. Lembrar de você rindo, de repente me fez rir também.

Quando olhei a casa de novo, já não era como nos 5 minutos passados. A casa agora parecia acabar com qualquer parte sua ainda impregnada em mim, te desmanchando, te derrubando enquanto se desfazia. Olhei pra onde costumava ficar a chaise long de onde você ficava me olhando andar pra um lado e pro outro, no escuro só se via a brasa do cigarro. Levantei do chão e resolvi percorrer nosso curto trajeto. Fui passando a mão pelas paredes, as mesmas paredes que você se apoiava enquanto se desfazia da roupa, subi a escada, mas não a nossa velha escada por onde íamos deixando os sapatos e tropeçando, por onde seguíamos contando quase que exclusivamente com nosso tato; subi a nova escada, uma improvisada que colocaram ali, fui subindo tão desequilibrada quanto fazia quando eu bebia mais que você. Andei pelo corredor feito sonâmbula, ainda procurando algum rastro seu, alguma coisa nossa que tenha ficado no lugar. Entrei no quarto e lembrei da última vez em que você esteve lá, pensei que na verdade, ninguém sabia o motivo de eu ter mandado cobrir uma parte com papel de parede, mas me explico agora, dizendo que foi só pra encobrir as marcas de suor do teu corpo. Naquele dia em que você foi embora, eu passei a tarde toda limpando a parede, como quem limpa a alma, como que me esterilizando de você; quando a noite veio e eu olhei a parede, a sua mão continuava lá, fosforecendo e andando pelo meu corpo. Eu podia ver você outra vez ali, no meio do quarto que já foi meu, dizendo coisas que só se diz às putas, ouvi os botões da sua camisa caindo no chão de novo e meu corpo ardeu.

Me encolhi toda no lugar da cama e deixei o tempo passar, feito você na minha vida, passando sem responsabilidade, me deixando no lugar e sem lugar. Fui me arrastando até onde deveria estar o criado-mudo, cheio de papéis de memória e fotografias dos lugares por onde eu tive que andar sozinha. Me deitei em algum momento e tive a vaga sensação de que eram seus aqueles passos, afundando círculos pelo assoalho, reclamando do meu descaso e da liberdade que eu carregava até então nas costas.

Só fomos nos falar novamente uma semana depois, no estacionamento, depois do show e tomando chuva. Eu lembro de ter negado a tua mão ao atravessar a rua, tenho ainda nas pontas dos dedos a textura do teu casaco marrom e a respiração cortada pelo silêncio que saía da tua boca. É engraçado até, mas entre tudo o que dissemos um ao outro, deixamos o óbvio de lado, talvez numa disputa infantil de não ceder primeiro, sei que deixamos oculto o que nos sufocava e todo mundo via. Deixamos essa última vez passar também.

Meses depois, quando o telefone tocou, eu não te senti me chamando. É sério. Eu sentia quando era você quem ligava, a campainha era igual a de todos, mas eu sempre sabia. Dessa vez meu coração não te sentiu, só fui reconhecer a voz depois do terceiro “Amanda?”.

Onde é que a gente foi parar?

Varando a madrugada, se atirando em qualquer cama, com quem?

Passo a estar em reforma, juntamente à velha casa que já nos viu dormir por tantas vezes. Derrubarão nossas paredes em breve, já tiraram nosso piso, já se vê o céu por um buraco em nosso teto.

Amanhã, quando a gente se encontrar no batente da porta de onde nos conhecemos, enquanto a gente se cumprimentar cordialmente e fingir não ter nem remorso, nem vontade, evita falar do meu cabelo, não me abrace por mais de 2 segundos e em momento algum apóie sua testa na maçã do meu rosto. Mas ó, canta aquela pra mim, só mais uma vez.