sexta-feira, 30 de julho de 2010

Amélia






Os livros iam se empilhando na mesinha de cabeceira e ela de repente pensa nas mil possibilidades que teria, levando a vida de qualquer um deles.

Amélia não era uma dessas que sonha à toa, que escreve o próprio nome em páginas brancas e constitui lindas famílias imaginárias, através de sobrenomes postos ao lado do seu. Se resumia "Amélia" para não narrar grandes explicações, mas guardava seu segredo no registro de nascimento: Maria Amélia Elizabeth Couto e Albuquerque. Mas preferia ser só Amélia. E tão Amélia!

Não era doce nem amarga, trabalhava demais e se divertia com tudo o que não fosse cotidiano. Amores? Só à distância. Era mais fácil controlar relações sem futuro que simplesmente assumir e causar problemas a si mesma. Tinha seus hábitos não muito saudáveis, como por exemplo: não dormir. Amélia revirava na cama desde muito pequena, travando verdadeiras batalhas contra o sono, que tardiamente sempre a vencia. Talvez fosse o medo de acordar e encarar o asfalto quente, a verdade dura. O fato é que Amélia não dormia mais.

Com o tempo ela foi silenciando, falava só consigo mesma, ouvia sua voz atropelando Bethânia aqui, Chico alí, Piaf acolá; mas pronunciamentos mesmo eram raros e sempre não entendidos. Ela se calou de vez.

Não se casou, também pudera, seu silêncio atraía somente músicos e ela os sacava de antemão, nunca errava. Homens assim gostam de mulheres caladas pra evitar disputa, quase que por ego. Amélia não se importava com tamanha imbecilidade se o sexo fosse bom. Fingia-se amar mais e mais. Mas não amava. Talvez se deixasse envolver com toda essa voracidade por tais homens, na busca pelo som que vinha deles e que lhe faltava. Não suportava dormir ao lado de qualquer um deles, que pareciam mais com animais cansados, exaustos do cio de Amélia que por sua vez não cansava.

Ela nunca teve lá muita imaginação para a vida, para o futuro que mais se parecia com quadros-brancos-virginais. Amélia era vazia. Transitava entre aeroportos, entrava em táxis, conhecia o mundo. Sozinha.

Um dia desses deu de fazer análise, fez um mês e descobriu que não existia. Na verdade estava começando a interpretar Freud, erroneamente. No meio de sua única crise existencial, ligou para um antigo amante no intuito de ter mais um dia longo de sexo e quem sabe, com um pouco de sorte, conseguisse até dormir com ele. Posto que Amélia já ia avançando na idade e com a terapia refletiu sobre ficar sozinha, no quanto pode ser difícil se cuidar sozinha com o passar das décadas. O problema é que ele não atendeu, estava com outra e Amélia provavelmente não lhe exalava novidade.

Da pilha de livros, Amélia separou apenas a sua edição surrada e preferida de "Cem anos de solidão", pensou em toda aquela Macondo e se viu em outros e outros, como jamais fizera.

Amélia se matou, não por desprezar a vida e tampouco por questões de fé. Se matou porque dormir pra sempre é um sonho e isso não era cotidiano para Amélia.

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